Tendo concluído o itinerário quaresmal que nos convidava a um encontro íntimo conosco e com nossas fragilidades, concluiu com um teste fabuloso, que experimentando nossa capacidade de enxergar os limites e vulnerabilidade do outro.
Neste domingo, iniciamos a semana maior de nossa fé: a semana santa, onde rememoramos a paixão, morte e ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo. Celebramos a domingo de Ramos, que não é caminho de glória, mas de entrega total, que inclui dor, fracasso e morte.
A liturgia retoma o evangelho lucano: Lc 22,14-23.56. Nos versículos anteriores Jesus havia encomendado a João e Pedro que organizassem a ceia pascal nos arredores de Jerusalém. A narrativa inicia com o anúncio da hora de Jesus, hora de voltar para junto do Pai na esfera divina, entretanto, o desfecho foi de dor, na mostra de um amor supremo. O ambiente é de despedida e uma certa angustia: “ardentemente desejei comer convosco esta ceia antes de padecer”, contudo, o que prossegue, é uma profunda ação de graças.
A comunidade nascente já não se alimentaria mais do judaísmo tradicional, mas da presença de Jesus reinante no meio dela: “de agora em diante não beberei do fruto da videira...” Videira era uma das analogias para representar Israel Jesus se revela a nova videira: “eu sou a videira e vós os ramos...” (Jo 15,5ss).
Com o gesto do cálice em comum e do pão partilhado, Jesus convida a que permaneçamos nele e reunidos em seu nome: “isto é o meu corpo, que é dado por vós. Fazei isto em memória de mim”. Uma sentença no versículo anterior me chama bastante atenção: ... meu corpo que é dado por vós e não a vós. Jesus se entrega como dom total a vista dos seus e espera que eles (nós) o levemos a todos. Jesus suplica: fazei isto em memória de mim, ou seja, por favor, fazei isto por mim. Caramba, isso é de uma profundidade tremenda, pois nos últimos instantes de sua vida Jesus suplica que o que ele ensinou no morra com ele, mas que seja oferecido como dom. Sendo assim, este pedido vai muito além da celebração da eucaristia, lugar que pode ser de exclusão, dado que nem todos tem acesso a este sacramento, mas diz respeito a vida como um todo. Estamos limitando nosso Senhor a um sacramento, que é prêmio para uns e, violência moral para outros. Será este o querer de Jesus? Possivelmente não, basta voltar aos evangelhos e ver onde Jesus tinha seu coração presente.
No v. 20 temos: “este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós”. Sangue é a máxima representação da vida. Quem são estes vós? Certamente Jesus não se referia somente ao grupo dos discípulos, mas a todos, pois sua missão salvadora foi revelar, recordar o plano de Deus para seus filhos e Deus não escolhe uns filhos e rejeita a outros, isso é ação desumana, não divina ou de um ser humano integrado.
No versículo seguinte (22), quando diz que tudo já está determinado, não faz menção ao querer de Deus, mas a determinação dos judeus em mata-lo. O que se segue é uma desconexão, pois Jesus fala de morte e os discípulos discutem quem é o maior dentre eles. Gesto que demonstra imaturidade no discipulado, razão pela qual pode ser compreendido a fuga dos discípulos/apóstolos no martírio de Jesus, somente permaneceram os que realmente fizeram o caminho e se deixaram tocar, transformar.
O projeto de Jesus é existencial, não apenas sacramental, resumido a ritos. A sacralidade está e se faz presente na vida como um todo, por isso nossas lideranças (religiosas) são aquelas que servem, não aquelas que desejam ser servidas e que tudo gire em torno do seu umbigo – “entre vós não deve ser assim” – .
Nossa missão como cristãos é muito superior: “assim como o meu Pai me confiou o Reino eu também vos confio o Reino”, Deus nos confia sua Criação, Ele confia em nós caramba, mesmo sabendo que metemos o pé na jaca, que exploramos em lugar de cuidar, pois Ele sabe que nos criou para o bem e que esse bem pode prevalecer.
Assim como Jesus orou para que Pedro não desfalecesse na fé (v. 32), Ele também o faz por nós, mesmo que nos creiamos fortes e capaz de tudo, sabe de nossas fragilidades (v. 33-34). Em tempos de vulnerabilidade tal como estamos vivendo, nos cabe clamar ao Senhor, que nos confirme na fé, no reto caminho e que nos ajude a também confirmar os irmãos, tal como Jesus rogou a Pedro, gesto que só seremos capazes com um coração convertido.
Os versículos seguintes serão refletidos na sexta-feira Santa. Concluo convidando a todos a que oremos por tantos irmãos, que dia a dia sobem ao calvário da dor, da flagelação, da morte causados pela violência, pelos dramas existenciais.
Fiquem com o meu carinho.
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