sábado, 23 de fevereiro de 2019

Loucura ou possibilidade?



Nos encontramos no 7º domingo do tempo comum, que faz uma profunda reflexão sobre a práxis cristã, que é ousada e desafiadora, mas que tendo Jesus como seu fundamento se estrutura em uma busca de seguir seu exemplo. 

A narrativa é de Lucas 6, 27-38, que propõe uma inversão de valores: já não mais olho por olho e dente por dente, mas o amor como princípio de vida. A primeira afirmação que encontramos é esta: Amai os vossos inimigos. Com esta afirmação Jesus não propõe um sentimentalismo nas relações, mas uma atitude madura que nos permita enxergar o outro em sua alteridade. Diante do outro que não sou eu, Jesus nos convida a uma atitude de respeito e diálogo, que é independente de nossos sentimentos. 

Trago dois grandes exemplos desta realidade. O primeiro é o próprio Jesus, que diante do desprezo que e da dor, usou de misericórdia para com seus algozes. O segundo exemplo é Nelson Mandela, presidente da África do Sul e líder do movimento contra o Apartheid: movimento que legislava a segregação dos negros no país. Por esta razão, foi perseguido e preso, passou 27 anos na prisão, sendo vários deles em uma solitária, recluso de tudo e de todos. Um dos carcereiros testemunhou que sua presença sempre foi pacífica e respeitosa, mas o gesto que marcou e deu grande testemunha de sua liberdade interior e perdão, foi ter convidado seus carcereiros para uma festa que celebrava sua liberdade. Surpreendentemente, colocou no lugar de destaque os dois estranhos carcereiros: um a sua direita e a esquerda, não para humilhá-los, mas para integrá-los e permitir-lhes que o vissem como um ser humano, não como um preso político, maltrapilho tratado como objeto. 

Mandela era cristão e agiu como um verdadeiro cristão. A vida e os gestos de Jesus foram para ele inspiração e motivação para o perdão. Sua longa estadia na prisão foi de hostilidade por parte das autoridades, sendo tratado como o maior terrorista da África do Sul, que deveria ser punido e perseguido, no entanto sua presença é recordada como sinônimo de paz e de respeito frente aos seus adversários. Nunca deixou de lutar e acreditar nos seus sonhos. Seu corpo estava, recluso, mas sua liberdade jamais conheceu qualquer cativeiro. Teve todos os motivos para ser revoltado, mas o amor foi sua escolha em forma de perdão. Amar assim dói, mas se constitui em um amor Profético. Após sua morte Brand, um dos ex-carcereiros, que a princípio o odiava, foi uma das pessoas que mais lamentou a sua morte, considerando uma perda para o mundo. 

O evangelho desmascara nossa preguiça para o amor, reduzindo-o ao sentimentalismo barato. “Amando” e demonstrando afeição somente por aqueles que dizem nos amar, mas que generosidade essa? Jesus recorda que também possuímos uma dimensão transcendental, que podemos ir além de nossas escolhas e relações. 

O evangelho nos convida a gratuidade, mas também a tratar o outro como gostaríamos de ser tratados. Isso requer um mínimo de autoconhecimento, saber reconhecer os limites, fortalezas e potenciais, para perceber que o outro também tem seus altos e baixos, suas carências e dons. 

Sei que esta realidade se apresenta desafiadora em um tempo marcado pelo individualismo, onde o foco transitou do nós para realização do eu. Sempre é válido a reflexão: quem sou eu para julgar? O gesto de semear amor sempre será a garantia de um Jardim florido na existência de nossa temporalidade. 

Um fecundo final de semana. 
Com carinho July Lima

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Coragem todos vós


Nos encontramos no 6º domingo do tempo comum, onde a Palavra de Deus vem ao nosso encontro impulsionando-nos à esperança e à coragem. O relato evangélico é o conhecido Sermão da Montanha (Mt 5, 1-12) ou da planície (Lc 6,17-26). Como estamos no ano C, refletiremos a versão lucana, que aprofunda mais o tema a partir de questões sociológicas, diferente de Mateus que se refere a atitudes, por isso também se somam sentenças para aqueles que causam a fome, a pobreza, a dor e a perseguição. 

Para Lucas, o anúncio das bem-aventuranças ocorre após a instituição dos doze apóstolos, que descem para servir, para ir ao encontro dos principais destinatários da mensagem do Reino de Deus: os pobres, não porque sejam eticamente melhores, mas porque dentre os filhos de Deus são os que mais sofrem e precisam de um cuidado especial. 

O discurso ocorreu em um contexto rural, no interior da Galileia, na dura realidade sofrida pelos pobres e camponeses que sofriam mais de perto a exploração e o domínio do império romano, que invadiam suas terras e levavam grande parte de sua colheita. A estas pessoas Jesus dirigiu uma mensagem de encorajamento. De acordo com estudiosos e Biblistas conhecedores do grego antigo e do hebraico, a correta a tradução não seria felizes, mas adiante, em frente todos vós os pobres... em frente todos vós que chorais... Sendo assim, a mensagem ganha um caráter muito mais dinâmico, que impulsiona as pessoas a serem protagonistas de suas vidas, a não se acomodarem e conformarem com fórmulas prontas. 

Seguindo esta lógica, a mensagem de Jesus não é simplesmente um consolo para os pobres após a morte, onde receberão de Deus um prêmio pela provação suportada, mas uma mensagem de ânimo, de resistência frente as dificuldades sofridas. É como se Jesus dissesse aquelas pessoas: não baixem a cabeça ou se resignem, mas lutem e sigam adiante para reverter seu quadro de fome, de miséria e de dor; não assumam o papel de vítimas, de coitados, mas sejam protagonistas de uma história que não terminou, não chegou ao fim. 

Este mesmo ciclo se repete constantemente em nossos dias: vivemos ameaçados por estruturas massacrantes que querem nos subjugar, em parte alcançam, mas os nossos sonhos e a nossa mente, não podem dominar se não o permitimos. O grande exemplo disso foi o psiquiatra Viktor Frankl, vítima da perseguição nazista e que esteve por anos preso no campo de concentração de Auschwitz. Seu corpo estava preso, mas seu espírito lutou para não sucumbir. Viu milhares de judeus morrendo e se entregando à morte. O cenário era nefasto, mas mesmo assim encontrou um sentido de vida e razões para lutar, para não se entregar ao sistema de morte dos nazistas. 

Jesus lamentou por aqueles que geravam o desequilíbrio social, a fome e a miséria de seus semelhantes, não porque uma pronta condenação os esperava, mas porque não eram capazes de amar e de entrar na lógica do projeto de Deus. 

Jesus também encorajou todos aqueles que são perseguidos por anunciarem sua Boa Nova e denunciarem tudo o que a ela se opõe. Vale Recordar os cristãos de todos os tempos que a Palavra de Deus não pode ser ouvida por todos do mesmo modo, pois ela é uma mensagem dinâmica, coletiva, mas também pessoal que provoca em cada um fruto necessário. 

Um excelente final de semana
July Lima

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Avançai para águas mais profundas


Nos encontramos no 5º domingo do tempo comum, com um marcante convite: avançar para as águas mais profundas. Como Igreja a água faz referência ao campo da fé e aos valores do Reino. O contrário disso vemos na violência disseminada pelo mundo afora, onde o ser humano diante do outro perde o seu valor; onde a ganância põe em risco a vida de todos; onde o prazer e o lucro não conhece limites...

O evangelho não condena riqueza, mas o egoísmo de quem acumula e ignore a miséria do outro. Nossa querida Minas Gerais tem chorado a morte de muitos filhos e filhas, pelo assustador mar de lama que chegou sem pedir licença, desmoronando famílias e comunidades inteiras. O que será deste povo? Com toda certeza, renascerá das cinzas, levando suas feridas, mas o que causa indignação é a impunidade e a vista grossa das autoridades em relação aos verdadeiros culpados. A culpada não é unicamente a Vale, mas todos os sistemas que deixaram de atuar com ética e com justiça. A verdadeira culpada é a ganancia, é o desejo do poder e do ter, que é capaz de cegar a todos. Oremos acompanhamos com gestos concretos os menos favorecidos desse sistema e denunciemos exigindo uma lei justa para todos.

O evangelho lucano neste final de semana, propõe a passagem da "pesca abundante" e a necessidade de avançar para águas mais profundas no campo da fé e da vida como um todo. O cenário é o interior da Galileia em uma região Costeira a beira do lago de Genesaré, também conhecido como mar da Galileia ou mar de Tiberíades. Ali se encontrava Jesus, no cotidiano daquelas pessoas. Ele chegou como uma Boa Notícia e lhes falava a partir do seu contexto e linguagem. Como um bom semeador lançava sementes do Reino, que podem ou não ser acolhidas. 

Como vimos em reflexões anteriores Jesus já havia iniciado sua vida pública oficialmente na sinagoga de Nazaré, quando anunciou seu projeto de vida (Lc 4, 14-21). Na passagem de hoje: Lucas 5, 1-11, Jesus se encontra seguido por uma grande multidão, composta de pessoas que testemunharam nele a presença do próprio Deus. Além da multidão, possivelmente Jesus também se encontrou com diversas pessoas que compunham o cenário do Lago: pescadores, crianças correndo por todo lado, vendedores, prostitutas e compradores de peixe. Especificamente o evangelho destaca os barcos de Simão e dos irmãos zebedeus, principais líderes do cristianismo primitivo. Jesus subiu na barca de Simão, sentou-se (atitude própria dos grandes mestres) e pois se a ensinar-lhes. 

Quanto ao conteúdo do ensinamento não temos conhecimento, mas o certo é que Jesus causava fascinação em seus ouvintes. Em um segundo momento, Jesus dialoga com Simão: "avançai para as águas profundas e lançarei as redes!" Este imperativo de Jesus vai muito além do pedido para uma pesca, mas reflete na própria vida de Simão: para não se contentar com a superficialidade da vida, mas ir além, aprofundar na fé e lançar as redes da confiança no projeto de Deus inaugurado por Jesus em um mundo em caos. 

A barca e símbolo da Igreja que é guiada pela Palavra de Jesus e o tem como seu fundamento. Simão se inclinou ao apelo de Jesus, e o resultado foi uma pesca abundante, pois a confiança na Palavra de Jesus e seu anúncio audaz, são forças de atração para o Reino. 

Lucas se adianta no novo nome de Simão (Lc 5,6), pois ali iniciou o seguimento de Pedro à pessoa de Jesus. Simão Pedro teve um gesto de profunda humildade, que o levou a atirar-se aos pés de Jesus, reconhecendo-se como pecador. Pedro reconheceu Jesus a santidade de Deus em Jesus, a qual não devia mais se aproximar, por isso exclama: afasta-te de mim que sou pecador" Mas no caminho do discipulado descobrirá que Jesus veio para os pecadores e como médico veio para curar os feridos. 

Acredito que a maioria de nós tem essa mesma tendência de se afastar daquilo que crê ser Sagrado, esquecendo-nos que eles são intermediários na terra que nos apontam para Deus e que seu papel não é emitir juízos condenatórios em nome de Deus. A Igreja não é santa, mas santa e pecadora, composta de homens e mulheres que são conscientes do seu pecado e fragilidade, tendo necessidade de Deus em suas vidas e se propõem a um segmento onde os valores que acreditam e encontram no evangelho, são norma de vida. 

Com Jesus os valores daquela sociedade ficaram invertidos, já não mais um imperialismo de uma sociedade, elitista, machista e patriarcal. No Reino inaugurado por Jesus as barreiras de classes são vencidas e novas relações são construídas, o contrário disso é uma ruptura com o pensamento e a práxis de Jesus na realização da obra do Pai. 

Um ótimo final de semana! 
Com carinho July Lima

1º Domingo da quaresma 2020