sábado, 30 de março de 2019

Esta Palavra arde meu coração


   Despacito caminhamos com o Senhor e o Senhor conosco, em nossas lutas, tentações, desertos, quedas e conquistas. Em tempos de tanta agitação e ativismo, precisamos voltar ao interior, ao ponto de partida para não perder de vista as metas, os sonhos e o caminho de regresso que nos conduzem as raízes, a própria história, a família, a casa.... No evangelho vemos que o jovem conhecido como pródigo, perdeu suas referências familiares e culturais, antes mesmo de deixar o lar e a casa paterna. Quantas coisas hoje afastam pais e filhos (trabalho, excesso de atividades, jogos, redes sociais, fácil acesso as drogas e etc.). Podemos não acreditar, mas a enxurrada de notícias que chegam até nós por diversos meios de comunicação, nos afetam direto e indiretamente trazendo uma carga emocional pesadíssima, que somados aos desafios do cotidiano e aos dramas existenciais, podem condicionar nossa forma de pensar, sentir e agir, convertendo-nos cada vez mais em uma sociedade ativista, doente, dependente de eletrônicos e narcóticos, o que no dizer de Yung-Chul Han, é denominado a sociedade do cansaço, uma sociedade neural (uma leitura fantástica). 

   O evangelho deste 4º domingo do itinerário quaresmal, é tirado de Lucas 15,1-3.11-32. Na maioria das reflexões que ouvi, percebo que a atenção é centrada quase e unicamente na parábola do filho pródigo, esquecendo o movimento que existe por detrás dela. Toda a narrativa é construída a partir da dinâmica da misericórdia de Deus, da qual todos somos necessitados e destinatários. 

   O local exato da passagem não conhecemos, entretanto o que chegou até nós, foi o fato de Jesus está cercado de pessoas não tão quistas naquela sociedade elitista, sexista e patriarcal. O fato gera duas reações: alegria por parte daqueles que foram acolhidos: os publicanos, pecadores e tantos outros rostos ocultos que não são mencionados (doentes de toda classe, mendigos, mulheres, prostitutas, desempregados, crianças...); e rejeição, julgamento por parte dos sábios e conceituados fariseus e escribas. Como bem sabemos, estamos nos aproximando da paixão e morte de Jesus, consequência de seus gestos de acolhida aos não acolhidos, de denuncia aos abusos de uma religião que não mais representava a Deus. Esta narrativa de hoje nos permite contemplar o escândalo que Jesus causou perante aquela sociedade. 

Vamos conhecer um pouco mais das pessoas acolhidas por Jesus e o que elas representavam. Os publicanos eram judeus de origem, mas que também serviam ao império romano, através da cobrança de impostos dos próprios judeus. Uma profissão desprezível para eles, que as vezes era imposta aos escravos por falta de candidatos ao posto. O judeu que assumisse este posto, era considerado um traidor, que favorecia a exploração do povo. Os pecadores eram pessoas conhecedoras da lei, mas que "conscientemente" rompiam a aliança selada com Iahweh. Estes dois grupos estavam privados da comunhão com Deus e excluídos e dos atos religiosos. 

   Na sociedade judaica tudo isso se constituía um enorme peso, dado que praticamente não existia separação entre religião, política e questões sociais. A pessoa era excluída da vida social. Jesus com sua práxis, rompe com estas estruturas e inaugura o Reino querido por Deus através da pedagogia da inclusão. Resgatando na prática o essencial da lei de Deus: o amor a Deus e amor ao próximo. Amar o outro é um desafio constante. Quantas vezes eu Juliana, passo por alguém que foge aos meus conceitos e tenho que rever meu olhar para não julgar. Com Jesus aprendo que um olhar diferenciado é o salto para a empatia e a compaixão. Este olhar diferenciado lhe permitia curar, libertar e amar, a mim, traz a consciência de alteridade e grandeza do outro, que é um mistério querido por Deus, ao qual sou chamada a compreender e a respeitar, pois também me faz consciente de minhas fragilidades e limites, caindo por terra o julgar, algo que antes era tão forte em mim (quem me conhece a mais tempo pode afirmar). 

   Convido a vocês que já me acompanham a algum tempo e se identificam com minhas dinâmicas, a mergulhar na cena proposta pelos primeiros versículos: Jesus cercado de pessoas carentes de amor. Imaginem seus olhos de amor, de carinho e bondade dirigido a estas pessoas. Nos coloquemos na cena, com nossas realidades, carências e deixemos ser olhados por Ele (de este tempo a você mesmo/a). Mas também os convido a rever suas atitudes frente ao diferente, ao marginalizado, aos que carregam o estigma da exclusão. Em nossa atualidade continua em sua maioria sendo o pobre, que diante dos nossos olhos se tornam invisíveis (maior dor que carregam) e são desfigurados pela miséria; os drogados; as prostitutas; os enfermos; muitos idosos que sofrem com o desrespeito, a falta de cuidado, carinho; os homossexuais, os travestis, os tatuados, os afro descendentes... No âmbito eclesial, os casais de segunda união, os divorciados, os separados e tantas outras realidades que são tratadas friamente (em sua maioria), esquecendo a pessoa que existe por trás destas realidades que tratamos como problemas e enquadramos na doutrina, esquecendo que ela avançou e convida a discernir cada caso, a colher e acompanhar para que a Boa Nova de Jesus chegue até estas pessoas. 

   A parábola que Jesus conta para elucidar sua pedagogia da inclusão e acolhida, quer mostrar que Deus representado pelo pai misericordioso respeita em primeiro lugar a liberdade de seus filhos por mais absurdo que sejam nossas escolhas, mas que se alegra acima de tudo com nosso regresso, pois a misericórdia sobrepõe a lei. O filho mais jovem representa todos nós que em algum momento ou outro partimos, abandonando o ninho para empreender voos, acertando ou não o caminho é um itinerário necessário. O filho mais velho representa o rigorismo de uma religião fechada em si mesmo e na lei, endurecida ao movimento do Espírito. Mas também representa pessoas moralistas que se julgam melhores que as demais por se considerarem certinhas, cumpridoras de todos os mandamentos, que vão a missa todos os dias, nunca deixam de comungar, mas é incapaz de comungar com a dor do outro ao seu lado. No entanto, os personagens também podem representar todos nós, em uma dinâmica de amadurecimento e crescimento pessoal. 

   Ao fim, é importante recordar que estamos em um momento propício de conversão, onde toda a Igreja se movimenta na reconciliação de Deus com seu povo, mas também na reconciliação eclesial, no resgate da vivencia entre irmãos, filhos de um mesmo Deus, que sai ao encontro de todos. Lembre-se que Deus nos usa como seus instrumentos. Seus somos membros de uma pastoral falamos de algum modo em nome da Igreja, por isso, cuidemos das palavras que dirigimos aos outros. Elas podem ferir, mas sobretudo, reconciliar. 

Um grande abraço. Agradeço imensamente o carinho de todos e o feedback que muitos fazem, alimentando cada vez mais minha paixão por escrever e ser melhor a cada dia.

sábado, 23 de março de 2019

Existência estéril


"Caminhante não há caminho, o caminho se faz ao andar" (Antônio Machado). Estamos no 3° estágio do itinerário quaresmal. Para cada um ele será experimentado de uma forma diferente conforme o chão que estamos pisando.

Na primeira leitura do livro do Êxodo 3,1-8a.13-15, temos a experiência magna que Moisés teve de Deus, uma experiência que não fechou se em si mesmo, mas foi sinal da salvação de Deus para uma nação: os hebreus cativos no Egito. Moisés que havia sido criado como um dos filhos do faraó, não conhecia até então. É bonito descobrir nesta passagem como Deus já se revela salvando, sem nada exigir. A iniciativa parte dele que ouve o clamor de seu povo. 

Moisés foi escolhido e enviado para transmitir a mensagem de Deus e ser líder de uma libertação que ia além da escravidão física. Deus se antecipava a uma aliança de amor que deu origem a um povo. Moisés se considerou inapto para tal empreendimento, mas ao longo do caminho fez seu processo de amadurecimento e aprofundamento da experiência deste Deus. Sua única certeza consistia em servir ao Deus de seus pais, razão pela qual também resgatou suas origens familiares, como podemos constatar ao longo do livro do Êxodo. 

O Salmo 103 realça o autêntico ser de Deus: bondade, que é percebida ou rejeitada, conforme os diferentes contextos culturais e familiares que estamos inseridos. Com isso não quero dizer que Deus é uma criação humana, mas as diferentes formas como o compreendemos sim. Muitas vezes o ser e o próprio agir de Deus é lido, baseado de acordo com nossas concepções. 

No Evangelho de Lucas 13, 1-9, é reforçado o convite à conversão. A narrativa inicia com um movimento curioso: neste momento, o que pressupõe uma ação anterior relevante. Recordemos que o capítulo 8, conclui com a reanimação da filha de Jairo, celebrando a vida por excelência. Em contraposição a este relato, se abre para o leitor um novo cenário, onde Jesus é abordado por mensageiros desconhecidos que lhe informam do martírio brutal sofrido por um grupo de Galileus. A razão do assassinato também não é revelada, mas o autor do homicídio tem Pilatos como protagonista, que mais adiante surgirá no relato da condenação de Jesus. 

O fato que mais escandalizou os portadores da notícia, consiste em que aqueles homens tiveram seu sangue misturado ao sangue dos sacrifícios oferecidos aos deuses pagãos (normativa para todo cidadão romano, excerto para os judeus que alcançaram a liberdade religiosa por meio de Herodes o grande). Estes creram quê isto ocorreu devido a má índole e pecado daqueles Galileus. Recordemos que na mentalidade semita tanto os benefícios, como os malefícios provinham de Deus, conforme os atos de cada um, ou seja, teologia da retribuição. A Deus só cabia o carimbo da sentença. Por esta razão Jesus os interpelou: "pensais que esses Galileus eram mais pecadores do que qualquer outro Galileu por terem sofrido tal coisa? Digo-vos que não. Mas se vós não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo". Jesus os ajudou a perceber que nem tudo o que ocorre na vida é fruto de nossos atos, mas consequência da injustiça e da ganância de um governo déspota (ditador). Igualmente os convidou a conversão, pois seus corações (centro da razão semita) estavam endurecidos, centrados em preceitos caducos. De acordo com a sua pedagogia inclusiva, cantou-lhes uma parábola para explicitar a essência do que queria transmitir. 

A figueira que foi trazida a cena, era um símbolo bastante conhecido por todos, muito utilizado pelos profetas para representar Israel. Jesus demonstrou que a figueira estava estéril, já não produzia mais os frutos que Iahweh esperava dela, por isso era necessário revitalizá-la para que redescobrisse sua verdadeira vocação. A presença de Jesus em seu meio (Israel) representava a oportunidade que Deus lhes oferecia de conversão, por essa razão, tocou fundo em suas estruturas, pesadas pelo excesso de penduricalhos acumulados ao longo dos anos (leis, 613 preceitos, ritos, sacrifícios e etc) que no entanto afastava o próprio Deus e aqueles que desejavam Dele ter uma autêntica experiência. 

Será que não temos seguido o mesmo caminho após uma caminhada de longos anos? O excesso de doutrinação,  ritualismo exacerbado, a não acolhida, o rigorismo e o distanciamento da vida, especialmente daqueles que mais necessitam, serão termômetro para esta avaliação. 

Na vida também podemos está uma figueira aparentemente frondosa, mas seca por dentro, presa as aparências, entretanto sem raízes e frutos. As pessoas que nos veem assim, se não são amigos verdadeiros desaparecem, desistem de nós. Também existem pessoas que diante do reconhecimento do fracasso pessoal, desistem de si mesmas, mas Deus não desiste, pelo contrário, nos oferece uma e outra oportunidade. Deus sabe de nossos defeitos, de nossas fraquezas e nem por isso, nos despreza porque sabe que o amor é o melhor remédio para alma em busca de si e da realização do projeto de Deus. 

Convido a vocês que reconheçam as oportunidades de Deus que lhe são oferecidas e como as acolhe. Nossa existência terrena é breve para não despertar nossa consciência superior. Cada vez penso sobre a brevidade da vida e a importância de viver sem amarras. Esta semana perdi alguém extremamente importante em minha história pessoal que foi exemplo de amor, de vida, de cristão, de avô e de alegria. Um verdadeiro presente de Deus: meu querido Bené (Benedito Fernandes), que através de sua presença carinhosa, foi testemunho de uma vida frutuosa, fecundada pela presença de Deus.

Um fecundo domingo e semana
July Lima 

sábado, 16 de março de 2019

Regresso ao interior


A quaresma é uma das belas etapas litúrgica que propicia de modo especial um regresso ao interior, um encontro conosco mesmo, não de forma egocêntrica e individualista, mas de abertura para Deus, para a vida e para o outro. Todo o trajeto é iluminado pelas Sagradas Escrituras, que contém Palavra de Deus  e diferentes experiências do Sagrado. O processo é um caminho de maturação, onde nos encontramos com nossos próprios limites, fragilidades e toda a potencialidade que temos para a vida. Entretanto, para que isto ocorra, precisamos de ousadia, de silêncio, recolhimento para escutar os clamores interiores, venham eles do corpo, do pensar, das emoções, da história pessoal, entre outros. 

O caminho não é fácil, dado que, precisamos superar as tentações que nos chegam de diversas formas (1º domingo); para superar os obstáculos, é preciso deixar-se guiar pela força divina que nos é revelada e que ao mesmo tempo nos tira de nosso comodismo (2º domingo); no caminho é necessário rever a nossa capacidade de frutificar o dom de Deus e arrancar o que não é vida (3º domingo); para novamente retomar o caminho de comunhão com o Pai, quando já somos capazes de ver-nos tal como somos, sem medo de confiar-lhe nossa existência (4º domingo); porém, é sempre bom recordar que nunca estamos prontos, mas sujeitos a novas quedas e tropeços, o que nos permite reconhecer também a fragilidade do outro em sua inteireza, sem nos deixar arrastar pelo impulso do julgar e condenar (5º domingo). Só assim seremos capazes de fazer a passagem da morte para vida, de uma existência superficial, ativista, digital, para uma existência rumo à maturidade, a compaixão e a liberdade. 

A Igreja propõe este período como um itinerário espiritual, recomendado que seja uma constante em nossas vidas, visto que a todo instante estamos nos construindo e nos relacionando. A igreja do Brasil ciente de que somos seres de relação, também propõe um itinerário de conversão social, de acordo com as principais demandas e clamores de seu povo através da Campanha da Fraternidade, que este ano tem como tema as políticas públicas, na busca de uma sociedade mais justa, que beneficie todas as classes sem preponderância de uma sobre a outra, pois sabe da importância que existe entre o autêntico amor a Deus e o cuidado a vida como um todo. No pensamento de Emmanuel Lévinas, seria responsabilidade pelo outro, um cuidado que não é imposto, mas que parte da nossa consciência de que também somos esse outro.

Estamos celebrando o 2º domingo do itinerário quaresmal. Tendo passado por um dos grandes desafios de sua vida em relação ao projeto do Pai, encontramos Jesus como plenitude de Deus: Evangelho Segundo Lucas 9, 28-36. De acordo com a narrativa, já não era mais necessário seguir o rigorismo da Lei mosaica, pois em Jesus se resumiram a Lei e a profecia (representação de Moisés e Elias). Historicamente este fato acarretou na sua crucificação e morte em Jerusalém (cúpula do poder religioso e político de Israel). 

Os discípulos que compunham a cena (Pedro, Tiago e João), até então não eram capazes de compreender a profundidade da missão de Jesus, por isso dormiram (sinal de resistência e imaturidade), o que não lhes permitiu ver com objetividade o quê ocorria diante de seus olhos. Permaneciam fechados no meio da confusão e comodismo de um criado a sua Deus a sua imagem, a quem se pode aprisionar em tendas, templos e santuários. Jesus lhes ensinou que a revelação de Deus ocorre no chão da vida, na história humana. No entanto, é preciso estar atento para ouvir a voz do mestre, tal como o Pai nos pediu: "este é meu Filho amado, escutai sempre o ele diz"! Seguir ou não esta voz é uma escolha pessoal, que vai muito além da observação de preceitos religiosos ou da adesão a algum grupo religioso. É uma escolha por viver o bem e com caráter, com transparência, sem fazer do outro objeto de interesses pessoais, econômicos e sexuais. É ser honesto quando se tem oportunidade de não ser; é se desarmar a cada instante de moralismos e preconceitos para que a vida sobressaia... 

Viver como um autêntico Cristão é dureza, não é para super homens ou super mulheres, mas para pessoas do cotidiano que tem a ousadia descer ao chão de sua humanidade e empreender um caminho de fé a luz do ressuscitado.

Grande beijo para todos e um lindo final de semana!
July Lima

1º Domingo da quaresma 2020