domingo, 1 de março de 2020

1º Domingo da quaresma 2020




Celebramos neste dia o primeiro domingo itinerário quaresmal, um período no qual somos convidados a uma interiorização e revisão da nossa atuação como cristãos e cristãs no mundo, bem como de nossa relação com o próximo, dentro e fora da comunidade de fé. A tentação aparece como o primeiro obstáculo para a realização da plena comunhão do homem com Deus.

Na 1° leitura do livro do Gênesis 2,7-9; 3,1-7, temos o segundo relato da narrativa judaico-cristã da criação do mundo, através de uma linguagem mítica, onde tudo é explicado a partir da intervenção divina. A figura central é o homem criado à imagem de Deus e vivificado por seu mesmo Espírito. Após da criação Deus convida o homem e a mulher à uma vida harmoniosa no Éden. A ambos concede plena liberdade de usufruto sobre os bens criados, adverte, no entanto, que o fruto do conhecimento perfeito não lhes pertence, pois está reservado ao próprio Deus. A serpente, a mais astuta entre os animais aparece como a voz da desobediência que incita a mulher a transgredir a vontade de Deus. Ao contrário de Jesus (como veremos no evangelho) a mulher não resiste à tentação e come do fruto proibido, dando início ao rompimento da aliança entre a criatura e o criador. Em seguida seus olhos se abrem e percebem que já não estão na harmonia criacional, mas em um mundo hostil e desconhecido. Percebem também a sua nudez/fragilidade: causa de medo e vergonha. Muitas pessoas acreditam que o pecado original está ligado ao ato sexual, no entanto Deus desde o momento da criação pediu que fossem fecundos e que multiplicassem ou seja, a vida sexual do casal já era parte integrante da criação. O pecado original na verdade, diz respeito a rejeição da vontade de Deus e a ruptura com o seu projeto de vida. 

No salmo 50/51, temos o reconhecimento do pecado e a procura da reconciliação do ser humano com Deus. Através desta belíssima oração o homem reconhece a grandeza do amor de Deus, do qual encontra forças para suplicar-lhe desde a sua condição pecadora.

A 2° leitura da carta aos romanos 5,12-19, está em contraposição da primeira leitura, onde Jesus, o Cristo é o protótipo do novo Adão, é aquele que restitui a aliança perdida no Éden, através de sua vida, morte e ressurreição.

No evangelho segundo a comunidade de Mateus 4,1-11, contemplamos Jesus em um longo período de oração no deserto antes de inaugurar sua ação messiânica. Ele aparece como o novo Israel tentado no deserto, mas diferentemente de Israel, Jesus sai vencedor do combate, não se deixando apartar de Deus. O demônio atua no exato momento em que Jesus está mais vulnerável, assolado pela fome e a sede. Através das três tentações percebemos sua ousadia e astúcia. Por três vezes e de diferentes formas prova a messianidade de Jesus: o tenta para que a use em benefício próprio (cf. v.3); para que ostente seu poder (cf. v.6) e adore um outro ser que não a Deus (cf. v.8-9). A terceira tentação é uma das mais ousadas: Jesus é levado a cima do monte, lugar propício do encontro com Deus e de sua manifestação, segundo as crenças de Israel. Ali o diabo propõe a Jesus uma adoração inversa: adorá-lo em lugar de adorar a Deus, curvar-se diante dele para obter glória e poder. Partindo das Sagradas Escrituras e impulsionado pelo Espírito de Deus, Jesus confronta sabiamente o divisor. Mateus afirma que o diabo deixou a Jesus e que os anjos de Deus se aproximaram para servi-lo. 

Como vemos as tentações chegam no momento inesperado e de fragilidade, sempre através de propostas sedutoras e atraentes aos nossos olhos ou através do nosso orgulho, soberba e indiferença. O que te é causa de queda hoje? O que fragiliza sua fé? Não se esqueça, Deus é contigo e te acompanha neste itinerário de maturação e encontro com o ressuscitado. 

Uma feliz semana

sábado, 14 de setembro de 2019

Amor como caminho do perdão



Após alguns meses sem escrever, dado as prioridades acadêmicas, cansaço, entre outros, tenho muita alegria em retomar os escritos neste blog. Todavia, não sei a frequência dos artigos, pois preciso dedicar tempo a outras atividades extras.

Igualmente causou-me alegria ao contemplar a liturgia do 24º domingo do tempo comum, com a parábola do “Pai misericordioso,” a qual resgata o cerne da mensagem de Jesus, onde com gestos e palavras, testemunha que ninguém está fora do projeto de Deus, assim como do seu amor e misericórdia. Uma mensagem existencial, que recorda que todos somos falhos, errantes, mas plenos de possibilidades. Por outro lado, reflete que a vida está configurada pelas escolhas que fazemos e, que não existem caminhos perfeitos, mas um itinerário de maturação a ser percorrido, entre erros e acertos.

Na 1º leitura (Ex 32,7-14), contemplamos Israel nesta dinâmica de amadurecimento, experimentando a tensão entre a fidelidade e a infidelidade frente a aliança selada com Iahweh. A 2º leitura (1 Tm 1,12-17), reaviva o testemunho de Paulo que encontrou um novo sentido de vida a partir do encontro com a pessoa de Jesus, que nele depositou sua confiança, apesar da vida errante que antes seguia.

No evangelho (Lc 15,1-32), é possível constatar que Jesus depositou este mesmo olhar e confiança nos publicanos e demais pecadores que dele se aproximavam para escutar suas palavras. Aqueles (fariseus/escribas) que estavam alheios da dinâmica por Ele empreendida, não eram capazes de reconhecer estas pessoas em sua dignidade, viam apenas seus pecados e impureza, por esse motivo julgaram a Jesus e condenaram seus atos. No entanto, como seu Reino é uma realidade para todos, contou-lhes uma parábola, a fim de refletir que estes (pecadores, publicanos, prostitutas…) também são filhos de Deus, o qual muito se alegra por seu retorno. “Um homem tinha dois filhos. O mais jovem disse ao pai: Pai, dai-me a parte da herança que me cabe. E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, ajuntando todos os seus haveres, o filho mais jovem partiu […]” (Lc 15,11-32). Tal atitude para a sociedade atual, pode não ter nenhum significado ou representar qualquer escândalo, mas no contexto judaico do século I, representava uma grava ofensa e vergonha para a família e seu clã, uma vez que o filho homem era o responsável de perpetuar o nome dos antepassados e de assumir os negócios da família.

O texto não deixa claro o local e a veracidade da parábola, mas de acordo com a pedagogia de Lucas, ocorreu ao longo do caminho, lugar de amadurecimento e decisão para aqueles que caminham com Jesus. Somam-se a esta parábola, outras duas: a da ovelha e da moeda perdida, que quando encontradas manifestam a alegria de seus donos, similar a alegria de Deus com o retorno de seus filhos dispersos.

O grande protagonista da parábola é o pai representado pelo próprio Deus diante de seus filhos. A narrativa inicia com um ousado pedido do filho mais jovem. De acordo com o teólogo espanhol José Antônio Pagola, este filho pediu o imperdoável. Ao exigir a sua parte da herança, estava dando por morto o próprio pai, rompia com a solidariedade da família e colocava em risco sua honra. O pedido do filho foi uma loucura, no entanto, a postura do pai surpreendeu ainda mais, inclinando-se ao desejo do filho, que se desinteressava pela casa paterna (cf. PAGOLA, 2014, p. 161). Após conquistar o almejado, partiu para um país distante, gastou todos os bens e caiu na miséria, mas também em si. Recordando a abundância de seu lar, encheu-se de coragem e regressou ao seio familiar, mesmo com a consciência de ter perdido seus direitos de filho, contudo, estes foram restabelecidos no encontro com o pai, que não se deteve na transgressão cometida pelo jovem, mas sim na alegria de seu retorno. A cena é incrível: tudo é relatado a partir de um olhar diferenciado, humanizador, não legalista. O pai, símbolo de autoridade e poder sobre tudo e sobre todos, deixou de lado sua função social e guiou-se pelos sentimentos de um pai que tem diante de si um filho que havia perdido. Depois disso, o texto não entra em detalhes, mas podemos imaginar a comoção entre aquele que acolheu e aquele que foi acolhido.

Todos já passamos por situações similares e sabemos o quanto as desavenças familiares são desgastantes e lastimam, por outro lado, conhecemos a alegria da reconciliação, a paz encontrada no ato do perdão. Aquele pai correu ao encontro do filho, abraçou-o com ternura, cobriu-o de beijos sem temer seu estado de impureza. Gestos que se distanciam do modelo patriarcal e se aproximam ao materno (cf. PAGOLA, 2014, p. 162), capaz de recobrar a dignidade do filho, revestindo-o com as sandálias de homem livre, a túnica e o anel que lhe conferem a filiação e o senhorio. Como no contexto judaico a família era um dos pilares primordiais, foi preciso restabelecer a honra da família perante a sociedade, razão pela qual, o pai ofereceu um banquete convidando a todos os vizinhos (cf. PAGOLA, 2014, p. 162).

O outro jovem entra em cena (irmão mais velho), sem compreender a festa inesperada, bem como a atitude do pai, que considerou permissiva e sem razão de ser. Revoltado rebelou-se contra ele, desconhecendo o outro como irmão: “este teu filho” (v. 30). Diante de sua incompreensão, o pai igualmente saiu ao seu encontro, tendo para com ele as mesmas atitudes de anteriormente, convidando-o a celebrar o retorno do irmão que estava morto e tornava a viver.

Diante dessa realidade é possível constatar, a misericórdia do pai foi orientada para os dois filhos, não fez acepção entre eles. Para o filho mais jovem, a atitude foi de espera ativa. Ao vê-lo dar os primeiros passos de volta à casa, saiu ao seu encontro, demonstrando o desejo de seu regresso. Ao filho mais velho, demonstrou confiança e amabilidade, reconhecendo-o como igual: “tu estás sempre comigo, e tudo que é meu é teu” (v. 31). Entretanto, o simples rigorismo da Lei, havia endurecido seu coração. Quantas vezes somos fiéis observantes das prescrições religiosas, mas no âmbito fraterno somos estéreis, incapazes de reconhecer a alteridade do Outro. Em nenhum momento aquele pai jugou as atitudes de seus filhos, mas buscou integrá-los na realidade que os separava.

Como está o seu processo de maturação? O que te afasta da família, dos amigos? O que te desmotiva e te faz abandonar tudo? O que te motiva a voltar, a viver, a sonhar? Muitas vezes somos o filho disperso pelo rigorismo, em outras, o que esbanja seus dons, mas o importante é estar a caminho e no caminho, consciente de quem somos e do propósito que Deus tem para nós!

Uma feliz semana, reconfortada pelo abraço de Pai.

sábado, 13 de abril de 2019

Palavra como Dom que inflama o coração

O encontro com a Palavra ilumina a vida, assim me sinto ao terminar esta reflexão que partilho com vocês. Invoquem ao Espírito Santo, preparem seus coração para o que Deus lhes tem a dizer. Não fiquem apenas com o que vos ofereço, mas baixem a fonte, orem no silencio de vossos corações.


Tendo concluído o itinerário quaresmal que nos convidava a um encontro íntimo conosco e com nossas fragilidades, concluiu com um teste fabuloso, que experimentando nossa capacidade de enxergar os limites e vulnerabilidade do outro. 

Neste domingo, iniciamos a semana maior de nossa fé: a semana santa, onde rememoramos a paixão, morte e ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo. Celebramos a domingo de Ramos, que não é caminho de glória, mas de entrega total, que inclui dor, fracasso e morte.

A liturgia retoma o evangelho lucano: Lc 22,14-23.56. Nos versículos anteriores Jesus havia encomendado a João e Pedro que organizassem a ceia pascal nos arredores de Jerusalém. A narrativa inicia com o anúncio da hora de Jesus, hora de voltar para junto do Pai na esfera divina, entretanto, o desfecho foi de dor, na mostra de um amor supremo. O ambiente é de despedida e uma certa angustia: “ardentemente desejei comer convosco esta ceia antes de padecer”, contudo, o que prossegue, é uma profunda ação de graças. 

A comunidade nascente já não se alimentaria mais do judaísmo tradicional, mas da presença de Jesus reinante no meio dela: “de agora em diante não beberei do fruto da videira...” Videira era uma das analogias para representar Israel Jesus se revela a nova videira: “eu sou a videira e vós os ramos...” (Jo 15,5ss). 

Com o gesto do cálice em comum e do pão partilhado, Jesus convida a que permaneçamos nele e reunidos em seu nome: “isto é o meu corpo, que é dado por vós. Fazei isto em memória de mim”. Uma sentença no versículo anterior me chama bastante atenção: ... meu corpo que é dado por vós e não a vós. Jesus se entrega como dom total a vista dos seus e espera que eles (nós) o levemos a todos. Jesus suplica: fazei isto em memória de mim, ou seja, por favor, fazei isto por mim. Caramba, isso é de uma profundidade tremenda, pois nos últimos instantes de sua vida Jesus suplica que o que ele ensinou no morra com ele, mas que seja oferecido como dom. Sendo assim, este pedido vai muito além da celebração da eucaristia, lugar que pode ser de exclusão, dado que nem todos tem acesso a este sacramento, mas diz respeito a vida como um todo. Estamos limitando nosso Senhor a um sacramento, que é prêmio para uns e, violência moral para outros. Será este o querer de Jesus? Possivelmente não, basta voltar aos evangelhos e ver onde Jesus tinha seu coração presente. 

No v. 20 temos: “este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós”. Sangue é a máxima representação da vida. Quem são estes vós? Certamente Jesus não se referia somente ao grupo dos discípulos, mas a todos, pois sua missão salvadora foi revelar, recordar o plano de Deus para seus filhos e Deus não escolhe uns filhos e rejeita a outros, isso é ação desumana, não divina ou de um ser humano integrado. 

No versículo seguinte (22), quando diz que tudo já está determinado, não faz menção ao querer de Deus, mas a determinação dos judeus em mata-lo. O que se segue é uma desconexão, pois Jesus fala de morte e os discípulos discutem quem é o maior dentre eles. Gesto que demonstra imaturidade no discipulado, razão pela qual pode ser compreendido a fuga dos discípulos/apóstolos no martírio de Jesus, somente permaneceram os que realmente fizeram o caminho e se deixaram tocar, transformar. 
O projeto de Jesus é existencial, não apenas sacramental, resumido a ritos. A sacralidade está e se faz presente na vida como um todo, por isso nossas lideranças (religiosas) são aquelas que servem, não aquelas que desejam ser servidas e que tudo gire em torno do seu umbigo – “entre vós não deve ser assim” –

Nossa missão como cristãos é muito superior: “assim como o meu Pai me confiou o Reino eu também vos confio o Reino”, Deus nos confia sua Criação, Ele confia em nós caramba, mesmo sabendo que metemos o pé na jaca, que exploramos em lugar de cuidar, pois Ele sabe que nos criou para o bem e que esse bem pode prevalecer. 

Assim como Jesus orou para que Pedro não desfalecesse na fé (v. 32), Ele também o faz por nós, mesmo que nos creiamos fortes e capaz de tudo, sabe de nossas fragilidades (v. 33-34). Em tempos de vulnerabilidade tal como estamos vivendo, nos cabe clamar ao Senhor, que nos confirme na fé, no reto caminho e que nos ajude a também confirmar os irmãos, tal como Jesus rogou a Pedro, gesto que só seremos capazes com um coração convertido. 

Os versículos seguintes serão refletidos na sexta-feira Santa. Concluo convidando a todos a que oremos por tantos irmãos, que dia a dia sobem ao calvário da dor, da flagelação, da morte causados pela violência, pelos dramas existenciais. 

Fiquem com o meu carinho. 


sábado, 30 de março de 2019

Esta Palavra arde meu coração


   Despacito caminhamos com o Senhor e o Senhor conosco, em nossas lutas, tentações, desertos, quedas e conquistas. Em tempos de tanta agitação e ativismo, precisamos voltar ao interior, ao ponto de partida para não perder de vista as metas, os sonhos e o caminho de regresso que nos conduzem as raízes, a própria história, a família, a casa.... No evangelho vemos que o jovem conhecido como pródigo, perdeu suas referências familiares e culturais, antes mesmo de deixar o lar e a casa paterna. Quantas coisas hoje afastam pais e filhos (trabalho, excesso de atividades, jogos, redes sociais, fácil acesso as drogas e etc.). Podemos não acreditar, mas a enxurrada de notícias que chegam até nós por diversos meios de comunicação, nos afetam direto e indiretamente trazendo uma carga emocional pesadíssima, que somados aos desafios do cotidiano e aos dramas existenciais, podem condicionar nossa forma de pensar, sentir e agir, convertendo-nos cada vez mais em uma sociedade ativista, doente, dependente de eletrônicos e narcóticos, o que no dizer de Yung-Chul Han, é denominado a sociedade do cansaço, uma sociedade neural (uma leitura fantástica). 

   O evangelho deste 4º domingo do itinerário quaresmal, é tirado de Lucas 15,1-3.11-32. Na maioria das reflexões que ouvi, percebo que a atenção é centrada quase e unicamente na parábola do filho pródigo, esquecendo o movimento que existe por detrás dela. Toda a narrativa é construída a partir da dinâmica da misericórdia de Deus, da qual todos somos necessitados e destinatários. 

   O local exato da passagem não conhecemos, entretanto o que chegou até nós, foi o fato de Jesus está cercado de pessoas não tão quistas naquela sociedade elitista, sexista e patriarcal. O fato gera duas reações: alegria por parte daqueles que foram acolhidos: os publicanos, pecadores e tantos outros rostos ocultos que não são mencionados (doentes de toda classe, mendigos, mulheres, prostitutas, desempregados, crianças...); e rejeição, julgamento por parte dos sábios e conceituados fariseus e escribas. Como bem sabemos, estamos nos aproximando da paixão e morte de Jesus, consequência de seus gestos de acolhida aos não acolhidos, de denuncia aos abusos de uma religião que não mais representava a Deus. Esta narrativa de hoje nos permite contemplar o escândalo que Jesus causou perante aquela sociedade. 

Vamos conhecer um pouco mais das pessoas acolhidas por Jesus e o que elas representavam. Os publicanos eram judeus de origem, mas que também serviam ao império romano, através da cobrança de impostos dos próprios judeus. Uma profissão desprezível para eles, que as vezes era imposta aos escravos por falta de candidatos ao posto. O judeu que assumisse este posto, era considerado um traidor, que favorecia a exploração do povo. Os pecadores eram pessoas conhecedoras da lei, mas que "conscientemente" rompiam a aliança selada com Iahweh. Estes dois grupos estavam privados da comunhão com Deus e excluídos e dos atos religiosos. 

   Na sociedade judaica tudo isso se constituía um enorme peso, dado que praticamente não existia separação entre religião, política e questões sociais. A pessoa era excluída da vida social. Jesus com sua práxis, rompe com estas estruturas e inaugura o Reino querido por Deus através da pedagogia da inclusão. Resgatando na prática o essencial da lei de Deus: o amor a Deus e amor ao próximo. Amar o outro é um desafio constante. Quantas vezes eu Juliana, passo por alguém que foge aos meus conceitos e tenho que rever meu olhar para não julgar. Com Jesus aprendo que um olhar diferenciado é o salto para a empatia e a compaixão. Este olhar diferenciado lhe permitia curar, libertar e amar, a mim, traz a consciência de alteridade e grandeza do outro, que é um mistério querido por Deus, ao qual sou chamada a compreender e a respeitar, pois também me faz consciente de minhas fragilidades e limites, caindo por terra o julgar, algo que antes era tão forte em mim (quem me conhece a mais tempo pode afirmar). 

   Convido a vocês que já me acompanham a algum tempo e se identificam com minhas dinâmicas, a mergulhar na cena proposta pelos primeiros versículos: Jesus cercado de pessoas carentes de amor. Imaginem seus olhos de amor, de carinho e bondade dirigido a estas pessoas. Nos coloquemos na cena, com nossas realidades, carências e deixemos ser olhados por Ele (de este tempo a você mesmo/a). Mas também os convido a rever suas atitudes frente ao diferente, ao marginalizado, aos que carregam o estigma da exclusão. Em nossa atualidade continua em sua maioria sendo o pobre, que diante dos nossos olhos se tornam invisíveis (maior dor que carregam) e são desfigurados pela miséria; os drogados; as prostitutas; os enfermos; muitos idosos que sofrem com o desrespeito, a falta de cuidado, carinho; os homossexuais, os travestis, os tatuados, os afro descendentes... No âmbito eclesial, os casais de segunda união, os divorciados, os separados e tantas outras realidades que são tratadas friamente (em sua maioria), esquecendo a pessoa que existe por trás destas realidades que tratamos como problemas e enquadramos na doutrina, esquecendo que ela avançou e convida a discernir cada caso, a colher e acompanhar para que a Boa Nova de Jesus chegue até estas pessoas. 

   A parábola que Jesus conta para elucidar sua pedagogia da inclusão e acolhida, quer mostrar que Deus representado pelo pai misericordioso respeita em primeiro lugar a liberdade de seus filhos por mais absurdo que sejam nossas escolhas, mas que se alegra acima de tudo com nosso regresso, pois a misericórdia sobrepõe a lei. O filho mais jovem representa todos nós que em algum momento ou outro partimos, abandonando o ninho para empreender voos, acertando ou não o caminho é um itinerário necessário. O filho mais velho representa o rigorismo de uma religião fechada em si mesmo e na lei, endurecida ao movimento do Espírito. Mas também representa pessoas moralistas que se julgam melhores que as demais por se considerarem certinhas, cumpridoras de todos os mandamentos, que vão a missa todos os dias, nunca deixam de comungar, mas é incapaz de comungar com a dor do outro ao seu lado. No entanto, os personagens também podem representar todos nós, em uma dinâmica de amadurecimento e crescimento pessoal. 

   Ao fim, é importante recordar que estamos em um momento propício de conversão, onde toda a Igreja se movimenta na reconciliação de Deus com seu povo, mas também na reconciliação eclesial, no resgate da vivencia entre irmãos, filhos de um mesmo Deus, que sai ao encontro de todos. Lembre-se que Deus nos usa como seus instrumentos. Seus somos membros de uma pastoral falamos de algum modo em nome da Igreja, por isso, cuidemos das palavras que dirigimos aos outros. Elas podem ferir, mas sobretudo, reconciliar. 

Um grande abraço. Agradeço imensamente o carinho de todos e o feedback que muitos fazem, alimentando cada vez mais minha paixão por escrever e ser melhor a cada dia.

sábado, 23 de março de 2019

Existência estéril


"Caminhante não há caminho, o caminho se faz ao andar" (Antônio Machado). Estamos no 3° estágio do itinerário quaresmal. Para cada um ele será experimentado de uma forma diferente conforme o chão que estamos pisando.

Na primeira leitura do livro do Êxodo 3,1-8a.13-15, temos a experiência magna que Moisés teve de Deus, uma experiência que não fechou se em si mesmo, mas foi sinal da salvação de Deus para uma nação: os hebreus cativos no Egito. Moisés que havia sido criado como um dos filhos do faraó, não conhecia até então. É bonito descobrir nesta passagem como Deus já se revela salvando, sem nada exigir. A iniciativa parte dele que ouve o clamor de seu povo. 

Moisés foi escolhido e enviado para transmitir a mensagem de Deus e ser líder de uma libertação que ia além da escravidão física. Deus se antecipava a uma aliança de amor que deu origem a um povo. Moisés se considerou inapto para tal empreendimento, mas ao longo do caminho fez seu processo de amadurecimento e aprofundamento da experiência deste Deus. Sua única certeza consistia em servir ao Deus de seus pais, razão pela qual também resgatou suas origens familiares, como podemos constatar ao longo do livro do Êxodo. 

O Salmo 103 realça o autêntico ser de Deus: bondade, que é percebida ou rejeitada, conforme os diferentes contextos culturais e familiares que estamos inseridos. Com isso não quero dizer que Deus é uma criação humana, mas as diferentes formas como o compreendemos sim. Muitas vezes o ser e o próprio agir de Deus é lido, baseado de acordo com nossas concepções. 

No Evangelho de Lucas 13, 1-9, é reforçado o convite à conversão. A narrativa inicia com um movimento curioso: neste momento, o que pressupõe uma ação anterior relevante. Recordemos que o capítulo 8, conclui com a reanimação da filha de Jairo, celebrando a vida por excelência. Em contraposição a este relato, se abre para o leitor um novo cenário, onde Jesus é abordado por mensageiros desconhecidos que lhe informam do martírio brutal sofrido por um grupo de Galileus. A razão do assassinato também não é revelada, mas o autor do homicídio tem Pilatos como protagonista, que mais adiante surgirá no relato da condenação de Jesus. 

O fato que mais escandalizou os portadores da notícia, consiste em que aqueles homens tiveram seu sangue misturado ao sangue dos sacrifícios oferecidos aos deuses pagãos (normativa para todo cidadão romano, excerto para os judeus que alcançaram a liberdade religiosa por meio de Herodes o grande). Estes creram quê isto ocorreu devido a má índole e pecado daqueles Galileus. Recordemos que na mentalidade semita tanto os benefícios, como os malefícios provinham de Deus, conforme os atos de cada um, ou seja, teologia da retribuição. A Deus só cabia o carimbo da sentença. Por esta razão Jesus os interpelou: "pensais que esses Galileus eram mais pecadores do que qualquer outro Galileu por terem sofrido tal coisa? Digo-vos que não. Mas se vós não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo". Jesus os ajudou a perceber que nem tudo o que ocorre na vida é fruto de nossos atos, mas consequência da injustiça e da ganância de um governo déspota (ditador). Igualmente os convidou a conversão, pois seus corações (centro da razão semita) estavam endurecidos, centrados em preceitos caducos. De acordo com a sua pedagogia inclusiva, cantou-lhes uma parábola para explicitar a essência do que queria transmitir. 

A figueira que foi trazida a cena, era um símbolo bastante conhecido por todos, muito utilizado pelos profetas para representar Israel. Jesus demonstrou que a figueira estava estéril, já não produzia mais os frutos que Iahweh esperava dela, por isso era necessário revitalizá-la para que redescobrisse sua verdadeira vocação. A presença de Jesus em seu meio (Israel) representava a oportunidade que Deus lhes oferecia de conversão, por essa razão, tocou fundo em suas estruturas, pesadas pelo excesso de penduricalhos acumulados ao longo dos anos (leis, 613 preceitos, ritos, sacrifícios e etc) que no entanto afastava o próprio Deus e aqueles que desejavam Dele ter uma autêntica experiência. 

Será que não temos seguido o mesmo caminho após uma caminhada de longos anos? O excesso de doutrinação,  ritualismo exacerbado, a não acolhida, o rigorismo e o distanciamento da vida, especialmente daqueles que mais necessitam, serão termômetro para esta avaliação. 

Na vida também podemos está uma figueira aparentemente frondosa, mas seca por dentro, presa as aparências, entretanto sem raízes e frutos. As pessoas que nos veem assim, se não são amigos verdadeiros desaparecem, desistem de nós. Também existem pessoas que diante do reconhecimento do fracasso pessoal, desistem de si mesmas, mas Deus não desiste, pelo contrário, nos oferece uma e outra oportunidade. Deus sabe de nossos defeitos, de nossas fraquezas e nem por isso, nos despreza porque sabe que o amor é o melhor remédio para alma em busca de si e da realização do projeto de Deus. 

Convido a vocês que reconheçam as oportunidades de Deus que lhe são oferecidas e como as acolhe. Nossa existência terrena é breve para não despertar nossa consciência superior. Cada vez penso sobre a brevidade da vida e a importância de viver sem amarras. Esta semana perdi alguém extremamente importante em minha história pessoal que foi exemplo de amor, de vida, de cristão, de avô e de alegria. Um verdadeiro presente de Deus: meu querido Bené (Benedito Fernandes), que através de sua presença carinhosa, foi testemunho de uma vida frutuosa, fecundada pela presença de Deus.

Um fecundo domingo e semana
July Lima 

sábado, 16 de março de 2019

Regresso ao interior


A quaresma é uma das belas etapas litúrgica que propicia de modo especial um regresso ao interior, um encontro conosco mesmo, não de forma egocêntrica e individualista, mas de abertura para Deus, para a vida e para o outro. Todo o trajeto é iluminado pelas Sagradas Escrituras, que contém Palavra de Deus  e diferentes experiências do Sagrado. O processo é um caminho de maturação, onde nos encontramos com nossos próprios limites, fragilidades e toda a potencialidade que temos para a vida. Entretanto, para que isto ocorra, precisamos de ousadia, de silêncio, recolhimento para escutar os clamores interiores, venham eles do corpo, do pensar, das emoções, da história pessoal, entre outros. 

O caminho não é fácil, dado que, precisamos superar as tentações que nos chegam de diversas formas (1º domingo); para superar os obstáculos, é preciso deixar-se guiar pela força divina que nos é revelada e que ao mesmo tempo nos tira de nosso comodismo (2º domingo); no caminho é necessário rever a nossa capacidade de frutificar o dom de Deus e arrancar o que não é vida (3º domingo); para novamente retomar o caminho de comunhão com o Pai, quando já somos capazes de ver-nos tal como somos, sem medo de confiar-lhe nossa existência (4º domingo); porém, é sempre bom recordar que nunca estamos prontos, mas sujeitos a novas quedas e tropeços, o que nos permite reconhecer também a fragilidade do outro em sua inteireza, sem nos deixar arrastar pelo impulso do julgar e condenar (5º domingo). Só assim seremos capazes de fazer a passagem da morte para vida, de uma existência superficial, ativista, digital, para uma existência rumo à maturidade, a compaixão e a liberdade. 

A Igreja propõe este período como um itinerário espiritual, recomendado que seja uma constante em nossas vidas, visto que a todo instante estamos nos construindo e nos relacionando. A igreja do Brasil ciente de que somos seres de relação, também propõe um itinerário de conversão social, de acordo com as principais demandas e clamores de seu povo através da Campanha da Fraternidade, que este ano tem como tema as políticas públicas, na busca de uma sociedade mais justa, que beneficie todas as classes sem preponderância de uma sobre a outra, pois sabe da importância que existe entre o autêntico amor a Deus e o cuidado a vida como um todo. No pensamento de Emmanuel Lévinas, seria responsabilidade pelo outro, um cuidado que não é imposto, mas que parte da nossa consciência de que também somos esse outro.

Estamos celebrando o 2º domingo do itinerário quaresmal. Tendo passado por um dos grandes desafios de sua vida em relação ao projeto do Pai, encontramos Jesus como plenitude de Deus: Evangelho Segundo Lucas 9, 28-36. De acordo com a narrativa, já não era mais necessário seguir o rigorismo da Lei mosaica, pois em Jesus se resumiram a Lei e a profecia (representação de Moisés e Elias). Historicamente este fato acarretou na sua crucificação e morte em Jerusalém (cúpula do poder religioso e político de Israel). 

Os discípulos que compunham a cena (Pedro, Tiago e João), até então não eram capazes de compreender a profundidade da missão de Jesus, por isso dormiram (sinal de resistência e imaturidade), o que não lhes permitiu ver com objetividade o quê ocorria diante de seus olhos. Permaneciam fechados no meio da confusão e comodismo de um criado a sua Deus a sua imagem, a quem se pode aprisionar em tendas, templos e santuários. Jesus lhes ensinou que a revelação de Deus ocorre no chão da vida, na história humana. No entanto, é preciso estar atento para ouvir a voz do mestre, tal como o Pai nos pediu: "este é meu Filho amado, escutai sempre o ele diz"! Seguir ou não esta voz é uma escolha pessoal, que vai muito além da observação de preceitos religiosos ou da adesão a algum grupo religioso. É uma escolha por viver o bem e com caráter, com transparência, sem fazer do outro objeto de interesses pessoais, econômicos e sexuais. É ser honesto quando se tem oportunidade de não ser; é se desarmar a cada instante de moralismos e preconceitos para que a vida sobressaia... 

Viver como um autêntico Cristão é dureza, não é para super homens ou super mulheres, mas para pessoas do cotidiano que tem a ousadia descer ao chão de sua humanidade e empreender um caminho de fé a luz do ressuscitado.

Grande beijo para todos e um lindo final de semana!
July Lima

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Loucura ou possibilidade?



Nos encontramos no 7º domingo do tempo comum, que faz uma profunda reflexão sobre a práxis cristã, que é ousada e desafiadora, mas que tendo Jesus como seu fundamento se estrutura em uma busca de seguir seu exemplo. 

A narrativa é de Lucas 6, 27-38, que propõe uma inversão de valores: já não mais olho por olho e dente por dente, mas o amor como princípio de vida. A primeira afirmação que encontramos é esta: Amai os vossos inimigos. Com esta afirmação Jesus não propõe um sentimentalismo nas relações, mas uma atitude madura que nos permita enxergar o outro em sua alteridade. Diante do outro que não sou eu, Jesus nos convida a uma atitude de respeito e diálogo, que é independente de nossos sentimentos. 

Trago dois grandes exemplos desta realidade. O primeiro é o próprio Jesus, que diante do desprezo que e da dor, usou de misericórdia para com seus algozes. O segundo exemplo é Nelson Mandela, presidente da África do Sul e líder do movimento contra o Apartheid: movimento que legislava a segregação dos negros no país. Por esta razão, foi perseguido e preso, passou 27 anos na prisão, sendo vários deles em uma solitária, recluso de tudo e de todos. Um dos carcereiros testemunhou que sua presença sempre foi pacífica e respeitosa, mas o gesto que marcou e deu grande testemunha de sua liberdade interior e perdão, foi ter convidado seus carcereiros para uma festa que celebrava sua liberdade. Surpreendentemente, colocou no lugar de destaque os dois estranhos carcereiros: um a sua direita e a esquerda, não para humilhá-los, mas para integrá-los e permitir-lhes que o vissem como um ser humano, não como um preso político, maltrapilho tratado como objeto. 

Mandela era cristão e agiu como um verdadeiro cristão. A vida e os gestos de Jesus foram para ele inspiração e motivação para o perdão. Sua longa estadia na prisão foi de hostilidade por parte das autoridades, sendo tratado como o maior terrorista da África do Sul, que deveria ser punido e perseguido, no entanto sua presença é recordada como sinônimo de paz e de respeito frente aos seus adversários. Nunca deixou de lutar e acreditar nos seus sonhos. Seu corpo estava, recluso, mas sua liberdade jamais conheceu qualquer cativeiro. Teve todos os motivos para ser revoltado, mas o amor foi sua escolha em forma de perdão. Amar assim dói, mas se constitui em um amor Profético. Após sua morte Brand, um dos ex-carcereiros, que a princípio o odiava, foi uma das pessoas que mais lamentou a sua morte, considerando uma perda para o mundo. 

O evangelho desmascara nossa preguiça para o amor, reduzindo-o ao sentimentalismo barato. “Amando” e demonstrando afeição somente por aqueles que dizem nos amar, mas que generosidade essa? Jesus recorda que também possuímos uma dimensão transcendental, que podemos ir além de nossas escolhas e relações. 

O evangelho nos convida a gratuidade, mas também a tratar o outro como gostaríamos de ser tratados. Isso requer um mínimo de autoconhecimento, saber reconhecer os limites, fortalezas e potenciais, para perceber que o outro também tem seus altos e baixos, suas carências e dons. 

Sei que esta realidade se apresenta desafiadora em um tempo marcado pelo individualismo, onde o foco transitou do nós para realização do eu. Sempre é válido a reflexão: quem sou eu para julgar? O gesto de semear amor sempre será a garantia de um Jardim florido na existência de nossa temporalidade. 

Um fecundo final de semana. 
Com carinho July Lima

1º Domingo da quaresma 2020