Estamos celebrando o tríduo pascal: ultima ceia, paixão/morte e ressurreição de Jesus. Os três atos se resumem em uma entrega total de Deus por meio de Jesus na ação do Espírito Santo. No memorial da última ceia, vemos que Jesus dá o exemplo de entrega generosa, por meio do serviço e reconhecimento do outro como irmão, pois ele rompe com a hierarquia escravista, se coloca no lugar do servo, mostrando aos seus seguidores que Ele veio para servir e não para ser servido.
Na quinta-feira santa, também se celebra o sacramento da Ordem e a instituição da Eucaristia: “se o grão de trigo que cai na terra não morre fica só, mas se morre produz muito fruto” (Jo 12, 14). A vida de Jesus foi uma total entrega desde Belém ao Calvário, por isso iremos refletir o verdadeiro significado da Eucaristia, a partir da reflexão e contribuição de Dom Luciano de Almeida, bispo da diocese de Mariano. Ao mesmo tempo, ele nos interpela a ser presença eucarística. Tais reflexões são do ano de 2006, dentro do simpósio teológico no XV Congresso Eucarístico Nacional, em Florianópolis.
A Eucaristia é um dom de Deus para a Igreja, pois Jesus é o pão que se entrega e se oferece continuamente como alimento, não somente por meio hóstia consagrada, mas por toda a sua vida que foi um constantemente oferecimento de si mesmo. Nesta entrega Jesus nos convida a assimilar sua vida, seus gestos que são profundamente transformadores, tanto na vida pessoal, como na vida social, por isso Dom Luciano falará da Eucaristia e transformação da sociedade, pois a Eucaristia é vida transfigurada.
1. O amor como centro da revelação cristã
Na eucaristia acolhemos a manifestação do amor de Deus por meio da Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Jesus, o enviado do Pai na força do Espirito, derrama seu sangue na cruz por nós e revela o infinito amor de Deus pela humanidade.
Na celebração da eucaristia somos convocados a reconhecer que Deus nos ama, ama a cada pessoa e oferece a todos a salvação: “este é o cálice da nova aliança que será derramado por vós e por todos para a remissão dos pecados”.
O amor eterno da Trindade se faz visível pela doação de Jesus na cruz. É a certeza deste amor que perdoa nossos pecados e ilumina toda nossa vida
2. Somos reconciliados pelo sangue de Cristo em um só corpo
A morte de cruz de Jesus foi uma consequência histórica pela rejeição que Ele sofreu, no entanto, ao derramar seu sangue por nós, Jesus sela e ratifica a nova e eterna aliança entre Deus e a humanidade. Por isso, quanto mais estivermos unidos a Cristo, estaremos unidos entre nós, pois somos irmãos e irmãs, filhos e filhas de Deus pela criação e paternidade de Deus, mas também porque fomos resgatados pelo mesmo sangue de Cristo. Ao oferecer-se como alimento, Jesus nos une a Ele e estreita entre nós os laços de fraternidade.
Cristo é o centro da comunidade eclesial. Nele todos se encontram, superando as diferenças e distancias de raça e cultura. Formamos pelo amor uma só família.
3. Cristo nos dá sua vida e nos ensina a amar
Ao dizer quem bebe do meu sangue e come da minha carne, vive da vida oferecida por Jesus. Aqui Jesus nos introduz nos seus sentimentos, valores e critérios, não na eucaristia tal como a concebemos hoje, mas a assimilação de sua vida e entrega, pois deseja que nos tornemos seus discípulos e participemos de sua vida, sempre mais semelhante a Ele, capazes de um amor oblativo, gratuito e total. Ele nos convida a amar como Ele ama. Por isso, o primeiro fruto da comunhão com Cristo é o amor oblativo, que deverá ser norma de vida dos discípulos. “Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 13,35). Para Jesus amar, é dar a vida por nós.
Entrar em comunhão com Cristo na eucaristia, é deixar-se possuir pelo seu dinamismo de amor e aprender dele a dar a vida pelos irmãos. A eucaristia se abre a força do amor, vencendo todo egoísmos, movendo-nos a buscar a bem material e espiritual do próximo. Por isso João Paulo II, intitulou um dos sínodos como: a eucaristia é a fonte e o ápice da vida e da missão da Igreja.
4. Comunidade servidora do amor
Na última ceia, Jesus toma o jarro, se cinge como uma toalha e se põe a lavar os pés dos discípulos, possivelmente um gesto que escandalizou os discípulos, pois lavar os pés do seu senhor, era trabalho dos escravos, e Jesus como mestre e senhor lavar os pés dos seus seguidores, mostrando que Ele veio para servir e não para ser servido. Ser discípulo de Jesus é assumir o lema de cada dia a serviço gratuito dos irmãos, começando pelos mais necessitados.
Para Dom Luciano, a beleza do amor gratuito está em viver a generosidade e a alegria de Deus, que nos amou primeiro e quer nosso bem antes que possamos ama-lo e agradecer-lhe. Crer que os gestos gratuitos de amor não pesam, porque nascem da bondade do coração e traz alegria aos que sabem amar no mais profundo. No final da narrativa do lava pés Jesus acrescenta: “se assim o fizerdes sereis meus discípulos” .
5. Predileção pelos últimos
Como um verdadeiro servo de Deus e pai dos mais pobres, Dom Luciano destaca o ponto cinco ao cuidado primordial aos mais pobres, pois são os mais necessitados dentre os nossos irmãos. Eucaristia quer dizer comunhão com Deus e com o outro. Como comungar e negar ao irmão o básico para sua subsistência? Isto não é comungar com o corpo de Cristo, mas com o sistema capitalista em que vivemos. O papa João Paulo II afirma que a predileção pelos últimos é a garantia do amor a todos, onde se manifesta a verdade e a pureza da gratuidade.
6. A gratuidade do perdão
Aqui não se trata de perdoar somente aos que pedem perdão, mas se trata de viver o amor por primeiro, pois é este o amor-perdão que Jesus espera de nós ao oferecermos nossa oferta na eucaristia: “vá reconciliar-te com teu irmão e depois oferece tua oferta” (Mt 5, 23). A eucaristia e a fé em Cristo, requer de nós uma coerência de vida, só assim encontraremos as raízes mais profundas da convivência humana e da transformação de da sociedade.
7. Os desafios da atual sociedade
Tanto hoje como na época de Dom Luciano, os desafios são inúmeros e variáveis. Quem já se dedicou a ler os documentos da Igreja de cunho social, verá que Dom Luciano, destaca os mesmos problemas que precisam de uma ação conjunta e imediata.
A primeira situação destacada é a questão da triste desigualdade que existe a nível social entre ricos e pobres, que leva uns a uma vida abundante e a outros a fome, a miséria e a morte precoce. A violência e a segregação também foram refletidas e questionadas, pois está dizimando cada vez mais a sociedade. O quarto ponto é bastante interessante, pois Dom Luciano fala da perda de sentido de tantos jovens, que chegam a tirar sua própria vida. Infelizmente este número cresce cada vez mais, deixando de ser impactante na vida humana.
Dom Luciano destaca estas e outras problemáticas para mostrar que nossa sociedade precisa de uma ação transformadora que aponte para os verdadeiros valores e fundamente uma convivência na justiça e na concórdia.
8. A força transformadora da Eucaristia
Dom Luciano parte do ato da encarnação de Jesus como aquele que veio em socorro da humanidade injusta e de morte. Com sua vida Jesus anuncia uma vida nova para todos, cuja a lei é o amor. Diante de uma humanidade ferida pelo ódio, pela injustiça, Jesus é resposta de amor, promulgado pela sua Palavra e testemunho de entrega por todos nós.
A eucaristia se apresenta assim como força renovadora da sociedade que vai nos ajudar pela vivencia do amor a enfrentar os desafios que minam e destroem a convivência humana.
9. A superação da fome e da miséria
O que nos falta não são recursos, mas a reta distribuição destes recursos, isto não acontece porque falta a vivencia da fraternidade. A eucaristia é preparada por Jesus, pela multiplicação dos pães e peixes, mensagem transmitida aos discípulos que devem dar pão a quem tem fome: “dai-lhes vos mesmo de comer” (Lc 9,13). Este é um dever básico da fraternidade que se estende a todos sem distinção.
A eucaristia é a ação de Jesus nos alimentando, ensinando-nos a partilha e a responsabilidade de saciar os famintos. Por isso, desde o início os cristãos uniram a celebração da eucaristia com a partilha dos bens aos irmãos. Nós somos corresponsáveis pela fome e miséria de nossos irmãos e irmãs. Cada celebração da eucaristia deveria nos questionar diante de Deus e levar-nos a partir o pão com os irmãos. A eucaristia deve unir a comunidade a serviço dos mais pobres e habilitar os cristãos para contribuir para leis e medidas que garantam vida digna para todos: trabalho, salário justo e moradia.
10. Eliminação do ódio, escola da paz
Pior do que a fome é o ódio que destrói o amor. Mesmo que nossa história esteja perpassada pela violência, devemos renunciar ao uso da violência e tornar-nos aprendizes do amor.
A eucaristia reafirma a entrega de Jesus para o perdão dos pecados. Jesus de modo livre, assumiu passar pela violência, fruto do ódio, e pediu ao Pai que perdoasse aos que o crucificavam. Pagou o mal com o bem, venceu o ódio pelo amor gratuito. O mundo não terá a paz se não descobri o caminho do perdão. A bondade desarma.
A eucaristia é compromisso de amor gratuito em relação aos que nos ofendem. Grande sabedoria de Dom Luciano, mas se ele soubesse de como muitos transformam a eucaristia em um instrumento de exclusão e não de amor, se entristeceria e se envergonharia, pois como pastor se questionaria que formação estão recebendo estes que se dizem cristãos. No entanto, somente quando a eucaristia penetrar no coração da humanidade, acabarão as guerras e violências.
11. Aproximar os distantes e construir a solidariedade
A fome é uma realidade que mata. O ódio gera inúmeras formas de violências e os resultados são drásticos. A eucaristia é mensagem de comunhão fraterna não só enquanto nos ajuda a vencer os egoísmos e partilhar o pão, ela também elimina o rancor e a dinâmica da vingança.
Na celebração da eucaristia nos encontramos todos sem distinção, como filhos e filhas de Deus, portadores da mesma dignidade. A eucaristia em sua própria dinâmica nos compromete com a busca de comunhão e unidade. Jesus em sua oração pede que todos sejamos um (Jo 17, 25). Nasce daí a capacidade de respeito, apreço e a empatia de conviver aceitando as diferenças como riquezas no interior da fraternidade.
No entanto, aos cristãos está reservado a missão de testemunhar e construir, pelo perdão e pelo diálogo, a concórdia no seio da sociedade.
12. Eucaristia: penhor da vida eterna e feliz
Na encíclica sobre a eucaristia: mane nobiscum, do papa João Paulo II, aponta para a dimensão da esperança que Cristo nos oferece na eucaristia. Somos todos peregrinos para a casa do Pai, sendo assim por que muitos irmãos insistem em excluir a outros da comunhão com a Igreja e da própria eucaristia? Somos todos peregrinos, caminhando na esperança que o mesmo Deus oferece e não detentores da verdade. Se faz mister manter os olhos fixos em Jesus e no horizonte do Reino. A eucaristia relembra e reafirma a alegria da vida plena e feliz. A eucaristia reaviva em nós a dimensão pascal e aponta para o céu.
A transformação da sociedade exige de nós a superação dos pseudovalores tidos como prioritários, e assumir o anuncio dos valores que realizam plenamente a pessoa e a sociedade: a justiça, o perdão, a reconciliação, a paz, a concórdia e a esperança da vida plena em Deus.
13. O amor maior e universal
A novidade do cristianismo não é uma realidade fechada em si mesmo, mas aberta a toda a humanidade, pela qual Jesus ofereceu sua vida.
A eucaristia fortalece os discípulos para fazer o bem a todos. Na eucaristia a Igreja aprende oferecer sua própria vida com a vida de Jesus pela salvação do mundo. Sua tarefa em união com Cristo é rezar e interceder pelo mundo e pela redenção de toda a humanidade: os que creem em Deus, os que tem outras crenças, os que atentam pela própria vida, todos estão envolvidos pela prece da Igreja que na eucaristia se faz oferta: “por Cristo, com Cristo, em Cristo”.
14. a alegria da missão
O serviço a vida que compete aos cristãos, consiste em partir o pão e lutar por condições dignas para todos. Devemos oferecer ao mundo o que temos de melhor: o conhecimento de Jesus Cristo e os valores do Reino. Todos têm o direito de saber que são amados e perdoados por Deus e o seu desejo de vida digna para todos.
15. A força da comunhão com Cristo
Dom Luciano destaca várias pessoas que sustentadas pelo amor e a fé no ressuscitado foram capazes de dá sua vida pela causa do Reino: Pe. João Bosco, Ir. Cleusa, Ir. Dorothy, Dom Oscar Romero e tantos outros. Pessoas que testemunharam o amor e cuidado de Deus para com todos, através de gestos concretos e de anuncio e denuncia, pois a eucaristia se manifesta igualmente em tais gestos de amor e entrega.
16. Outra sociedade é possível
Outro mundo e sociedade são possíveis desde que o amor gratuito seja a lei interior de nossa vida e sociedade. Na força da eucaristia é possível vencer o ódio com amor, a violência com a paz, a discórdia com a reconciliação e o desespero com a esperança.
O segredo da transformação da humanidade está na mudança das relações humanas. É na eucaristia que entramos em comunhão com o testemunho e a força de Cristo que nos alimenta e envia a amar a todos.
17. Permanecer no mundo
Mesmo com suas limitações e fragilidades, a transformação do mundo se dá na historia com toda sua vicissitude. Na instituição da eucaristia, Jesus comunicou aos discípulos para permanecerem no mundo, sem ser do mundo (Jo 17, 15-16). Pediu ao Pai que não os tirasse do mundo, mas os preservasse do mal para levar adiante o plano divino e testemunhar o amor de infinito de Deus para com todos.
18. A forma eucarística
O verdadeiro discípulo de Cristo é chamado a permanecer no mundo para viver a “forma eucarística”, ou seja, fazer o bem a todos e dar frutos de salvação, para ser luz, sal e fermento do mundo (Jo 15, 16 e Mt 5, 16). A Eucaristia deste modo é algo bem mais profundo, no entanto não vivemos a forma eucarística, mas sim a forma exclusivista, onde fazemos da eucaristia um prêmio para os que se consideram santos e puros, uma relação intimista longe distante da dinâmica eucarística.
19. A paz diferente
O cristão, a luz da eucaristia não pede para ser liberado de suas atribulações, mas encontra força no amor, sem espera de milagres e prodígios. A eucaristia concede assim a paz diferente daquela que o mundo oferece. É a reconciliação com o projeto divino, transformando o mundo e a sociedade pelo amor.
Com vimos, a eucaristia é a proposta da presença continua de Deus no meio de seu povo, que foi reduzida a um milagre que leva ao comodismo, a preguiça espiritual. É preciso redescobrir o verdadeiro valor da eucaristia, capaz de mover a vida e iluminar a humanidade, só assim veremos novos céus e nova terra, um projeto para o presente e futuro da criação.
Dom Luciano é um espelho que nos mostra nossas rugas e reflete nosso jeito de ser distante da proposta do Nazareno. De fato não é possível celebrar a Eucaristía sem celebrar a partilha com os mais oprimidos. Não há Ressurreição nem Reino sem igualdade e sem a preservação dos direitos fundamentais do Ser Humano. Precisamos ser sarcedotes, profetas e reis da igualdade e da fraternidade.
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