O sinal da multiplicação dos pães é o 4º sinal dentre os sete apresentados por João. A passagem se encontra no capitulo 6, “conhecido como o mimi-evangelho de João, que contém a mensagem central sobre Jesus” (Konings). “O capitulo esta subdividido em 4 episódios: o sinal dos pães (6, 1-15); o caminhar de Jesus sobre as águas e seu reencontro com a multidão (6,16-25); o discurso sobre o pão (6, 26-65) e a opção por Jesus (6, 66-71)” (Xavier Léon Oufour).
O relato da multiplicação dos pães, também se encontra nos evangelhos sinóticos: Marcos 6, 32-42; Mateus 14, 13-21 e Lucas 9, 10-17, sendo que Mateus e Marcos apresentam uma segunda versão da multiplicação dos pães: Mt 15, 32-39 e Mc 8, 1-10. No entanto, existem diferenças sutis que podem passar desapercebidas aos olhos dos leitores. O grande diferencial da narrativa joanina, é a primazia dos gestos de Jesus: ele é quem percebe a necessidade da multidão faminta e reparte o pão. João 6, 1-15, traz muita relação e contraste com o Antigo Testamento.
A narrativa inicia com um marcador temporal: “depois disso”, que pressupõe uma ação continuada de Jesus, especialmente sobre os fatos ocorridos no capitulo 5, com a cura de um aleijado (5, 1-47), o que gera admiração por parte da multidão e conflito com os judeus. A partir do capitulo 6, o conflito com os judeus, ficará cada vez mais acirrado, o que demanda dos discípulos, uma opção de fé por Jesus (Jo 6, 59-71).
O relato da multiplicação dos pães, ganha seu pleno sentido, no discurso do Pão da Vida, pronunciado na sinagoga de Cafarnaum (6, 26-65). Em João 6, existe uma ruptura literária e geográfica na narrativa. “Muitos estudiosos acreditam que capitulo 6, foi deslocado, talvez por uma troca acidental ou adicional das páginas” (Konings). Seguindo a ordem correta teríamos: Jo 4,54 e Jo 6, e Jo 5, 7 e 8, narrativas que se dão em Jerusalém, enquanto que o capitulo 6 ocorre no interior da Galileia.
Aprofundando o sinal
V.1 Jesus se encontra com seus discípulos a beira do mar da Galileia, também conhecido como mar de Tiberíades ou Genesaré. “O termo mar serve para aludir ao mar que se atravessou no antigo êxodo” (Juan Mateos e Juan Barreto). Não se diz de onde Jesus veio, mas “a cena se desloca sem transição da capital (Jerusalém), para o interior da Galileia” (Konings). “A menção de Tiberíades é importante, pois era a sede de Herodes e sua corte” (J. Mateos e J. Barreto), que possivelmente se encontrava em Jerusalém para os festejos da pascoa judaica.
V.2 Uma grande multidão os seguia pelos sinais que Jesus realizara em favor dos enfermos. “A terminologia, ver os sinais, já nos põe de sobreaviso: ele aponta para uma fé superficial” (Konings,). “Tais sinais antecipam o êxodo de Jesus, afim de tirar o povo da opressão, por isso os sinais que apresenta são sinais de amor e não de temor” (J. Mateos e J. Barreto). Segundo os mesmos teólogos, o primeiro êxodo termina na terra prometida, enquanto que o êxodo proposto por Jesus, parte dela, pois transformou-se em terra de escravidão.
V.3 Subiu a montanha... “a menção a montanha confere um caráter solene: Jesus se senta com seus discípulos. O gesto faz uma profunda alusão a Moisés subindo ao monte Sinai” (Oufour). “Em vista da aliança, Moises subiu ao monte duas vezes, Jesus igualmente subirá duas vezes, na primeira com seus discípulos e na segunda quando tentam faze-lo rei” (J. Mateos e J. Barreto). “A discrição também nos remete ao sermão da montanha de Mateus 4,23-5,2, onde Jesus se apresenta como o novo Moises” (Konings).
V.4 O autor situa a proximidade da festa da pascoa celebrada pelos judeus, a expressão surge com um tom de indiferença: “a festa dos judeus”. Por um lado, existe uma chamada de atenção para o que vai acontecer, mas também um gesto de descontinuidade com o judaísmo: Jesus não sobe para Jerusalém, mas para a Galileia, o que na visão de Konings, seria uma possível alternativa cristã para rememorar a pascoa e o êxodo). Por outro lado, a multidão, não acorre ao templo como de costume, mas a Jesus.
V.5-7 “ Jesus vê a multidão que o seguia”, aqui ao contrário dos sinóticos, Jesus é quem percebe a necessidade da multidão e provoca a questão: com o que vamos alimentá-los? Jesus se revela como um verdadeiro pastor que se preocupa com suas ovelhas. “Aqui como no deserto, coloca-se a questão da subsistência do povo, que foi motivo de tentação para Israel” (J. Mateos e J. Barreto). Jesus põe Felipe a prova, que por sua vez, raciocina materialmente e não segundo a fé em Jesus. Na sua concepção, seria impossível alimentar a multidão, pois um denário equivalia a um dia de trabalho e não bastaria para saciar a multidão. “Jesus não aceita esta estrutura que subjuga e quer verificar, até que ponto a aceitam seus discípulos” (J. Mateos e J. Barreto).
V. 8-9 André é quem aparentemente apresenta a solução: há aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixinhos. Este versículo está repleto de simbologia: o menino representa a comunidade cristã, pequena, mas que é capaz de partilhar o que tem. O número sete, representa dentro da cultura judaica, o número da perfeição, “neste relato indica a totalidade do alimento pela comunidade” (J. Mateos e J. Barreto).
Os pães de cevada, faz menção ao profeta Eliseu que alimentou uma milícia de soldados, em tempos de fome e escassez (2 Rs 4,42-44) e ao próprio êxodo, quando o povo caminhava pelo deserto (Êx 16 e Nm 11, 22). O pão de cevada, era o alimento típico dos pobres, assim como os peixes, que eram considerados impuros, visto que o mar era símbolo do mal, de perigo e etc. O número 5 representa a Torá enquanto que o número 2, representa o livro dos profetas (Nevi im) e os livros sapienciais (Ketuvim), que formam os livros sagrados do judaísmo. João relativiza uma vez mais a instituição judaica. “Jesus se revela maior que Eliseu, Abraão, Jacó, Moises...“ (Konings).
V. 10-11, Humanamente não há como saciar a multidão, porém Jesus entra em ação, sem levar em conta o pessimismo dos discípulos. Pede aos discípulos para acomodar a multidão na grama. “Comer reclinado era próprio de pessoas livres, particularmente na ceia pascal, via-se nisso a passagem da escravidão para a liberdade. Na pascoa de Jesus, a multidão dos oprimidos mudará de condição” (J. Mateos e J. Barreto).
João como sempre é rico em detalhes: “havia muita grama! “O lugar, era denominação do templo, em oposição ao lugar situado em Jerusalém, onde jazia a multidão dos oprimidos, agora Jesus é o lugar onde reside a gloria de Deus, ou seja, o lugar onde se manifesta o amor incondicional ao homem, é o lugar dos homens livres, fora da instituição opressora” (J. Mateos e J. Barreto).
Jesus tomou os pães e deu graças, um gesto profundamente judaico do cotidiano do povo, onde reconheciam que tudo provinha de Deus. Diferente dos sinóticos, é Jesus quem reparte o pão para a multidão. “À pascoa que Jesus anuncia não se come de pé e as pressas como a antiga, come-se deitado, reclinado, por ser a pascoa dos homens livres. É a pascoa dos que chegam e não dos que fogem. O maná era limitado, Jesus pelo contrário, responde a necessidade humana até a satisfação total” (J. Mateos e J. Barreto).
V.12-13, Jesus pede aos discípulos para recolher as sobras. Sobra é sinal de abundancia. “Não é mais o maná que dá a vida, mas Jesus” (Oufour). “Em comparação com o sinal operado por Jesus, aparece uma superabundância” (R. Fabris e B. Maggioni). O maná apodrecia se fosse recolhido para o acumulo, mas as sobras, são recolhidas para que não se pecam. O número 12, algo completo, mas também se refere as tribos de Israel.
V. 14-15, os que viram o sinal, creram nele como o profeta que deveria vir. O povo vê em Jesus uma continuidade com o antigo Israel, veem nele o messias davídico esperado e não a novidade de sua proposta. “Os judeus esperavam o para tempo messiânico, a renovação do maná, sabendo disso, Jesus quer evitar o fanatismo, quer mostrar que o entusiasmo da multidão é falso.... (R. Fabris e B. Maggioni). Ao se retirar a montanha, Jesus mostra que seu messianismo é diferente. “Jesus pretendia tornar o povo livre, mas eles querem renunciar a própria liberdade” (J. Mateos e J. Barreto).
Similar a Moises após a traição do povo (Ex 34, 3-4), Jesus retira-se sozinho para o monte. “O monte representa a esfera divina, a gloria, o amor de Deus.
O capitulo 6 com sua riqueza literária e teológica, nos apresenta Jesus como um Deus plenamente encarnado na realidade, sendo capaz de perceber suas necessidades mais intimas, ajudando-as a fazer um caminho de fé profundo e não segundo os moldes do mundo, através uma fé mercantilista. Jesus se revela o verdadeiro Pão de vida que se oferece e nos ensina o dom da partilha, reconhecendo que tudo que temos é um dom de Deus, oferecido na liberdade de seu amor. João nos mostra que no caminho de fé, sempre existirá uma tensão onde devemos fazer uma opção continua por Jesus e seu projeto, não ao nosso molde, como fez a multidão que viu os sinais realizados por ele, mas na verdadeira acolhida que parte sempre da vida, perpassa o humano e retorna para Deus.
Boa leitura minha gente!